O lendário país do recall
Fazer alguma coisa? Mas fazer o quê? Liloca tinha
uma resposta: vamos tomar o poder. Vamos nos apossar do país do recall
Leitora manda boneca para recall e não a recebe de
volta. "Como explicar para uma criança que seus brinquedos foram embora há
três meses e não voltaram?
Cotidiano, 18 de fevereiro de 2008.
Minha querida dona,
Quem lhe escreve sou eu, a sua fiel e querida
boneca, que você não vê há três meses. Sei que você sente muitas saudades,
porque eu também sinto saudades de você. Lembro de você me pegando no colo, me
chamando de filhinha, me dando papinha... Você era, e é, minha mãezinha
querida, e é por isso que estou lhe mandando esta carta, por meio do cara que
assina esta coluna e que, sendo escritor, acredita nas coisas da imaginação.
Posso lhe dizer, querida, que vivi uma tremenda
aventura, uma aventura que em vários momentos me deixou apavorada. Porque tive
de viajar para o distante país do recall.
Aposto que você nem sabia da existência desse
lugar; eu, pelo menos, não sabia. Para lá fui enviada. Não só eu: bonecas
defeituosas, ursinhos idem, eletrodomésticos que não funcionavam e peças de
automóvel quebradas. Nós todos ali, na traseira de um gigantesco caminhão que
andava, andava sem parar.
Finalmente chegamos, e ali estávamos, no misterioso
e, para mim, assustador país do recall. Um homem nos recebeu e anunciou, muito
secamente, que o nosso destino em breve seria traçado: as bonecas (e os
ursinhos, e outros brinquedos, e objetos vários) que tivessem conserto seriam
consertados e mandados de volta para os donos; quanto tempo isso levaria era
imprevisível, mas três meses era o mínimo. Uma boneca que estava do meu lado, a
Liloca, perguntou, com os olhos arregalados, o que aconteceria a quem não
tivesse conserto. O homem não disse nada, mas seu sorriso sinistro falava por
si.
Passamos a noite num enorme pavilhão destinado
especialmente às bonecas. Éramos centenas ali, algumas com probleminhas
pequenos (um braço fora do lugar, por exemplo), outras já num estado
lamentável. Estava muito claro que para várias de nós não haveria volta.
Naquela noite conversei muito com minha amiga
Liloca - sim, querida dona, àquela altura já éramos amigas. O infortúnio tinha
nos unido. Outras bonecas juntaram-se a nós e logo formamos um grande grupo.
Estávamos preocupadas com o que poderia nos suceder.
De repente, a Liloca gritou: "Mas gente, nós
não somos obrigados a aceitar isso! Vamos fazer alguma coisa!". Nós a
olhamos, espantadas: fazer alguma coisa? Mas fazer o quê?
Liloca tinha uma resposta: vamos tomar o poder.
Vamos nos apossar do país do recall.
No começo, aquilo nos pareceu absurdo. Mas Liloca
sabia do que estava falando. A mãe da dona dela tinha sido uma militante
revolucionária e sempre falava nisso, na necessidade de mudar o mundo, de dar o
poder aos mais fracos.
Ora, dizia Liloca, ninguém mais fraco do que nós,
pobres, desamparados e defeituosos brinquedos. Não deveríamos aguardar
resignadamente que decidissem o que fazer com a gente.
De modo, querida dona, que estamos aqui preparando
a revolução. Breve estaremos governando o país do recall. Mas não se preocupe,
eu a convidarei para uma visita. Você poderá vir a qualquer hora. E não
precisará de recall para isso.
Moacyr Scliar
Folha de S. Paulo (SP)
25/2/2008.
1.
A partir do propósito do texto em estudo, é
possível afirmar que
A.
o gênero carta foi usado como uma instrução de
reclamação.
B.
a carta foi escrita como forma de reclamação para
uma fábrica de recall
C.
a carta foi destinada à Liloca, boneca de uma
fábrica de brinquedos.
D.
“Cotidiano” é o vocativo usado na carta para se
referir ao destinatário.
E.
a carta foi escrita a uma criança com a finalidade
de lhe dizer sobre o destino de sua boneca.
2.
“Naquela noite conversei muito com minha amiga Liloca - sim, querida
dona, àquela altura já éramos amigas. O infortúnio
tinha nos unido.”
A
palavra destacada se refere à (ao)
A.
saudade de sua dona.
B.
descaso do setor de recall.
C.
preparação para a revolução.
D.
possibilidade de não ter conserto.
E.
desdém do funcionário da fábrica.
3.
Dentro das possibilidades do discurso do texto, uma
boneca escreve à sua dona para fazer uma reclamação cujo desfecho pode ser
sintetizado pela máxima
A.
“Em terra de cego, que tem um olho é rei.”
B.
“É preciso ver a vida com os olhos de uma criança.”
C.
“O coração tem razões que a própria razão
desconhece.”
D.
“Tu te
tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”
E.
“Trabalhadores do mundo, uni-vos, vós não tendes
nada a perder!”
·
Texto para a questão 4
Trecho da carta de Pero Vaz de
caminha ao Rei D. Manuel.
De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e
muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a
estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia
muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem
coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito
bons ares [...]. Porém o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será
salvar esta gente.
Carta de Pero Vaz de Caminha. In:
MARQUES, A.; BERUTTI, F.; FARIA, R. História moderna através de textos. São
Paulo: Contexto, 2001.
4.
A carta de Pero
Vaz de Caminha permite entender o projeto colonizador para a nova
terra. Nesse trecho, “Porém o
melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente”, o
emissor da carta se refere à (ao)
A.
respeito à cultura nativa local.
B.
pobreza na qual os povos nativos viviam.
C.
ausência de trabalho por parte dos índios.
D.
transmissão do conhecimento aos povos indígenas.
E.
aculturação e à doutrinação por meio da catequese.
Carta de Olívia a Eugênio
Parte 1
Meu querido,
(...)
Quero falar de
ti. Hoje tens tudo quanto sonhava: posição social, dinheiro, conforto, mas no
fundo te sentes ainda bem como aquele Eugênio indeciso e infeliz, meio
desarvorado e amargo que subia as escadas do edifício da faculdade,
envergonhado de sua roupa surrada. Continuou em ti a sensação de inferioridade,
o vazio interior, a falta de objetivos maiores. Começas agora a pensar no
passado com uma pontinha de saudade, com um pouquinho de remorso. Tens tido
crises de consciência, não é mesmo? Pois ainda passarás horas mais amargas e eu
chego até a amar o teu sofrimento, porque dele, estou certa, há de nascer o
novo Eugênio.
Uma noite me
disseste que Deus não existia porque em mais de vinte anos de vida não O
pudeste encontrar. Pois até nisso se manifesta a magia de Deus. Um ser que
existe, mas é invisível para uns e mal perceptível para outros e duma nitidez
maravilhosa para os que nasceram simples ou adquiriram simplicidade por meio do
sofrimento ou duma funda compreensão da vida. Dia virá em que em alguma volta
de teu caminho há de encontrar Deus. Um amigo meu, que se dizia ateu, nas
noites de tormenta desafiava Deus, gritava para as nuvens, provocando o raio.
Deus é tão poderoso que está presente até nos pensamentos dos que dizem não
acreditar na sua existência. Nunca encontrei um ateu sereno. Eles se preocupam
tanto com Deus como o melhor dos deístas.
O argumento
mais fraco que tenho contra o ateísmo é que ele é absolutamente inútil e
estéril; não constrói nada, não explica nada, não leva a coisa nenhuma.
Se soubesses
como tenho confiança em ti, como tenho certeza na tua vitória final. Deixo-te
Anamaria e fico tranquila. Já estou vendo vocês dois juntos e muito amigos na
nova vida, caminhando de mãos dadas. Pensa apenas nisto: há nela muito de mim e
principalmente muito de ti. Anamaria parece trazer escrito no rosto o nome do
pai. É uma marca de Deus, Genoca, compreende bem isto. Vais continuar nela: é
como se te fosse dado modelar, com o barro de que foste feito, um novo Eugênio.
5.
A carta é um gênero textual que pode
apresentar diversas finalidades. Nela, o texto reflete as intenções do remente
ao destinatário.
Em se tratando da primeira parte da Carta de Olívia a
Eugênio, é possível perceber que a intenção da remetente é
A. pedir satisfações.
B. vingar-se de Eugênio.
C. detalhar sua atual condição de saúde.
D. cobrar a convivência de Eugênio com a filha.
E.
demonstrar seus argumentos sobre as escolhas de Genoca.
6. Pelos elementos descritos na carta, as concepções de Eugênio e Olívia
eram
A.
díspares
B. análogas
C. equânimes
D. harmônicas
E. equivalentes
Parte 2
Quando eu
estava ainda em Nova Itália. Li muitas vezes o teu nome ligado ao do teu sogro
em grandes negócios, sindicatos, monopólios e não sei mais quê. Estive pensando
muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a
causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época.
Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece
de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir
arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?
Quero que abra
os olhos, Eugênio, que acorde enquanto é tempo. Peço-te que pegues a minha
Bíblia que está na estante de livros, perto do rádio, leias apenas o Sermão da
Montanha. Não te será difícil achar, pois a página está marcada com uma tira de
papel. Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em
que Jesus nos fala dos lírios do campo que não trabalham nem fiam e, no entanto,
nem Salomão em toda sua glória jamais se vestiu como um deles.
Está claro que
não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar deitados à
espera de que tudo nos caia do céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de
criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Precisamos, entretanto,
dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao
sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios
do campo e as aves do céu.
Não penses que
estou fazendo o elogio do puro espírito contemplativo e da renúncia, ou que
ache que o povo devia viver narcotizado pela esperança da felicidade na “outra
vida”. Há na terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes,
para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os
aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e
as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que
conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as
do amor e da persuasão. Considera a vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um
homem de ação e não um puro contemplativo.
Quando falo em
conquista, quero dizer a conquista duma situação decente para todas as
criaturas humanas, a conquista da paz digna, através do espírito de cooperação.
E quando falo
em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as
desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo. Refiro-me, sim, à
aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas
a que ela forçosamente nos há de levar.
(...)
Adeus. Sempre
aborreci as cartas de romance que terminam de modo patético. Mas permite que eu
escreva.
Tua para a eternidade.
Olívia
·
Texto que servirá de base para responder à questão 7
A filosofia cínica
Os
cínicos gregos e romanos clássicos tinham a virtude como a necessidade única para
a alcançar a felicidade, e seguiram a filosofia cegamente, negligenciando tudo
que não promovesse a perfeição da virtude e não permitisse chegar à felicidade.
O termo cínico, derivado do grego que significa cão, era usado porque os
cínicos negligenciavam a sociedade, a família e o dinheiro, entre outras
coisas, de forma semelhante à um cão.
Os
cínicos viviam rejeitando valores sociais, poder, fama e dinheiro,
desacreditando que isso poderia trazer a felicidade verdadeira. A ganância,
para eles, era vista como uma forma de sofrimento, assim como alguns outros
comportamentos que criticavam.
Disponível em https://www.estudopratico.com.br/cinismo/.
Acesso em 18.jun.2018.
7. O diálogo entre a parte 2 da carta de Olívia e a Filosofia cínica se dá,
principalmente, no trecho
A.
. Li muitas
vezes o teu nome ligado ao do teu sogro em grandes negócios, sindicatos,
monopólios e não sei mais quê.
B.
E, quando o amor ao dinheiro, ao
sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios
do campo e as aves do céu.
C.
Quero que abra
os olhos, Eugênio, que acorde enquanto é tempo.
D.
Não penses que
estou fazendo o elogio do puro espírito contemplativo e da renúncia
E.
Quando falo em
conquista, quero dizer a conquista duma situação decente para todas as
criaturas humanas
8. O principal objetivo da carta encontra-se no item
A.
Eles esquecem
o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as
relações de criatura para criatura.
B.
Os homens
deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala
dos lírios do campo
C.
Está claro que
não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar deitados à
espera de que tudo nos caia do céu.
D. Precisamos,
entretanto, dar um sentido humano às nossas construções.
E. E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e
passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo.
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