TEXTO E GRAMÁTICA EM PAUTA: junho 2018

quarta-feira, 27 de junho de 2018

QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO GÊNERO CARTA


O lendário país do recall
Fazer alguma coisa? Mas fazer o quê? Liloca tinha uma resposta: vamos tomar o poder. Vamos nos apossar do país do recall

Leitora manda boneca para recall e não a recebe de volta. "Como explicar para uma criança que seus brinquedos foram embora há três meses e não voltaram?

Cotidiano, 18 de fevereiro de 2008.
Minha querida dona,

Quem lhe escreve sou eu, a sua fiel e querida boneca, que você não vê há três meses. Sei que você sente muitas saudades, porque eu também sinto saudades de você. Lembro de você me pegando no colo, me chamando de filhinha, me dando papinha... Você era, e é, minha mãezinha querida, e é por isso que estou lhe mandando esta carta, por meio do cara que assina esta coluna e que, sendo escritor, acredita nas coisas da imaginação.
Posso lhe dizer, querida, que vivi uma tremenda aventura, uma aventura que em vários momentos me deixou apavorada. Porque tive de viajar para o distante país do recall.
Aposto que você nem sabia da existência desse lugar; eu, pelo menos, não sabia. Para lá fui enviada. Não só eu: bonecas defeituosas, ursinhos idem, eletrodomésticos que não funcionavam e peças de automóvel quebradas. Nós todos ali, na traseira de um gigantesco caminhão que andava, andava sem parar.
Finalmente chegamos, e ali estávamos, no misterioso e, para mim, assustador país do recall. Um homem nos recebeu e anunciou, muito secamente, que o nosso destino em breve seria traçado: as bonecas (e os ursinhos, e outros brinquedos, e objetos vários) que tivessem conserto seriam consertados e mandados de volta para os donos; quanto tempo isso levaria era imprevisível, mas três meses era o mínimo. Uma boneca que estava do meu lado, a Liloca, perguntou, com os olhos arregalados, o que aconteceria a quem não tivesse conserto. O homem não disse nada, mas seu sorriso sinistro falava por si.
Passamos a noite num enorme pavilhão destinado especialmente às bonecas. Éramos centenas ali, algumas com probleminhas pequenos (um braço fora do lugar, por exemplo), outras já num estado lamentável. Estava muito claro que para várias de nós não haveria volta.
Naquela noite conversei muito com minha amiga Liloca - sim, querida dona, àquela altura já éramos amigas. O infortúnio tinha nos unido. Outras bonecas juntaram-se a nós e logo formamos um grande grupo. Estávamos preocupadas com o que poderia nos suceder.
De repente, a Liloca gritou: "Mas gente, nós não somos obrigados a aceitar isso! Vamos fazer alguma coisa!". Nós a olhamos, espantadas: fazer alguma coisa? Mas fazer o quê?
Liloca tinha uma resposta: vamos tomar o poder. Vamos nos apossar do país do recall.
No começo, aquilo nos pareceu absurdo. Mas Liloca sabia do que estava falando. A mãe da dona dela tinha sido uma militante revolucionária e sempre falava nisso, na necessidade de mudar o mundo, de dar o poder aos mais fracos.
Ora, dizia Liloca, ninguém mais fraco do que nós, pobres, desamparados e defeituosos brinquedos. Não deveríamos aguardar resignadamente que decidissem o que fazer com a gente.
De modo, querida dona, que estamos aqui preparando a revolução. Breve estaremos governando o país do recall. Mas não se preocupe, eu a convidarei para uma visita. Você poderá vir a qualquer hora. E não precisará de recall para isso.
Moacyr Scliar 
Folha de S. Paulo (SP) 25/2/2008.

1.    A partir do propósito do texto em estudo, é possível afirmar que
A.   o gênero carta foi usado como uma instrução de reclamação.
B.   a carta foi escrita como forma de reclamação para uma fábrica de recall
C.   a carta foi destinada à Liloca, boneca de uma fábrica de brinquedos.
D.   “Cotidiano” é o vocativo usado na carta para se referir ao destinatário.
E.   a carta foi escrita a uma criança com a finalidade de lhe dizer sobre o destino de sua boneca.

2.    Naquela noite conversei muito com minha amiga Liloca - sim, querida dona, àquela altura já éramos amigas. O infortúnio tinha nos unido.”
A palavra destacada se refere à (ao)
A.   saudade de sua dona.
B.   descaso do setor de recall.
C.   preparação para a revolução.
D.   possibilidade de não ter conserto.
E.   desdém do funcionário da fábrica.

3.    Dentro das possibilidades do discurso do texto, uma boneca escreve à sua dona para fazer uma reclamação cujo desfecho pode ser sintetizado pela máxima
A.   “Em terra de cego, que tem um olho é rei.”
B.   “É preciso ver a vida com os olhos de uma criança.”
C.   “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”
D.    “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”
E.   “Trabalhadores do mundo, uni-vos, vós não tendes nada a perder!”

·         Texto para a questão 4

Trecho da carta de Pero Vaz de caminha ao Rei D. Manuel.
De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares [...]. Porém o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente.
Carta de Pero Vaz de Caminha. In: MARQUES, A.; BERUTTI, F.; FARIA, R. História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2001.

4.    A carta de Pero Vaz de Caminha permite entender o projeto colonizador para a nova terra. Nesse trecho, “Porém o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente”, o emissor da carta se refere à (ao)
A.   respeito à cultura nativa local.
B.   pobreza na qual os povos nativos viviam.
C.   ausência de trabalho por parte dos índios.
D.   transmissão do conhecimento aos povos indígenas.
E.   aculturação e à doutrinação por meio da catequese.

Carta de Olívia a Eugênio

Parte 1

Meu querido,
(...)
Quero falar de ti. Hoje tens tudo quanto sonhava: posição social, dinheiro, conforto, mas no fundo te sentes ainda bem como aquele Eugênio indeciso e infeliz, meio desarvorado e amargo que subia as escadas do edifício da faculdade, envergonhado de sua roupa surrada. Continuou em ti a sensação de inferioridade, o vazio interior, a falta de objetivos maiores. Começas agora a pensar no passado com uma pontinha de saudade, com um pouquinho de remorso. Tens tido crises de consciência, não é mesmo? Pois ainda passarás horas mais amargas e eu chego até a amar o teu sofrimento, porque dele, estou certa, há de nascer o novo Eugênio.
Uma noite me disseste que Deus não existia porque em mais de vinte anos de vida não O pudeste encontrar. Pois até nisso se manifesta a magia de Deus. Um ser que existe, mas é invisível para uns e mal perceptível para outros e duma nitidez maravilhosa para os que nasceram simples ou adquiriram simplicidade por meio do sofrimento ou duma funda compreensão da vida. Dia virá em que em alguma volta de teu caminho há de encontrar Deus. Um amigo meu, que se dizia ateu, nas noites de tormenta desafiava Deus, gritava para as nuvens, provocando o raio. Deus é tão poderoso que está presente até nos pensamentos dos que dizem não acreditar na sua existência. Nunca encontrei um ateu sereno. Eles se preocupam tanto com Deus como o melhor dos deístas.
O argumento mais fraco que tenho contra o ateísmo é que ele é absolutamente inútil e estéril; não constrói nada, não explica nada, não leva a coisa nenhuma.
Se soubesses como tenho confiança em ti, como tenho certeza na tua vitória final. Deixo-te Anamaria e fico tranquila. Já estou vendo vocês dois juntos e muito amigos na nova vida, caminhando de mãos dadas. Pensa apenas nisto: há nela muito de mim e principalmente muito de ti. Anamaria parece trazer escrito no rosto o nome do pai. É uma marca de Deus, Genoca, compreende bem isto. Vais continuar nela: é como se te fosse dado modelar, com o barro de que foste feito, um novo Eugênio.

5.    A carta é um gênero textual que pode apresentar diversas finalidades. Nela, o texto reflete as intenções do remente ao destinatário.
Em se tratando da primeira parte da Carta de Olívia a Eugênio, é possível perceber que a intenção da remetente é
A.   pedir satisfações.
B.   vingar-se de Eugênio.
C.   detalhar sua atual condição de saúde.
D.   cobrar a convivência de Eugênio com a filha.
E.   demonstrar seus argumentos sobre as escolhas de Genoca.

6.    Pelos elementos descritos na carta, as concepções de Eugênio e Olívia eram
A.   díspares
B.   análogas
C.   equânimes
D.   harmônicas
E.   equivalentes

Parte 2
Quando eu estava ainda em Nova Itália. Li muitas vezes o teu nome ligado ao do teu sogro em grandes negócios, sindicatos, monopólios e não sei mais quê. Estive pensando muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?
Quero que abra os olhos, Eugênio, que acorde enquanto é tempo. Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de livros, perto do rádio, leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será difícil achar, pois a página está marcada com uma tira de papel. Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo que não trabalham nem fiam e, no entanto, nem Salomão em toda sua glória jamais se vestiu como um deles.
Está claro que não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar deitados à espera de que tudo nos caia do céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu.
Não penses que estou fazendo o elogio do puro espírito contemplativo e da renúncia, ou que ache que o povo devia viver narcotizado pela esperança da felicidade na “outra vida”. Há na terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as do amor e da persuasão. Considera a vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um homem de ação e não um puro contemplativo.
Quando falo em conquista, quero dizer a conquista duma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, através do espírito de cooperação.
E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há de levar.
(...)
Adeus. Sempre aborreci as cartas de romance que terminam de modo patético. Mas permite que eu escreva.
                                                                                 Tua para a eternidade.
                                                                                 Olívia

·         Texto que servirá de base para responder à questão 7
A filosofia cínica
Os cínicos gregos e romanos clássicos tinham a virtude como a necessidade única para a alcançar a felicidade, e seguiram a filosofia cegamente, negligenciando tudo que não promovesse a perfeição da virtude e não permitisse chegar à felicidade. O termo cínico, derivado do grego que significa cão, era usado porque os cínicos negligenciavam a sociedade, a família e o dinheiro, entre outras coisas, de forma semelhante à um cão.
Os cínicos viviam rejeitando valores sociais, poder, fama e dinheiro, desacreditando que isso poderia trazer a felicidade verdadeira. A ganância, para eles, era vista como uma forma de sofrimento, assim como alguns outros comportamentos que criticavam.
Disponível em https://www.estudopratico.com.br/cinismo/. Acesso em 18.jun.2018.

7.    O diálogo entre a parte 2 da carta de Olívia e a Filosofia cínica se dá, principalmente, no trecho
A.   . Li muitas vezes o teu nome ligado ao do teu sogro em grandes negócios, sindicatos, monopólios e não sei mais quê.
B.   E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu.
C.   Quero que abra os olhos, Eugênio, que acorde enquanto é tempo.
D.   Não penses que estou fazendo o elogio do puro espírito contemplativo e da renúncia
E.   Quando falo em conquista, quero dizer a conquista duma situação decente para todas as criaturas humanas

8.    O principal objetivo da carta encontra-se no item
A.   Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura.
B.   Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo
C.   Está claro que não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar deitados à espera de que tudo nos caia do céu.
D.   Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções.
E.   E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo.